sábado, 17 de janeiro de 2015

Hoje cedo, entre um gole e outro de um café requentado, sentei na mesa do terraço e vi os pássaros voarem para lá e para cá, mas hoje cedo, não sei porquê eu os vi em preto e branco.

O tempo
Sim, este garoto de pés descalços e olhar atrevidamente além, muito além de tudo, da colina e das verdades, decidiu vir ter comigo hoje, mas justo hoje, que meus olhos estão em preto e branco? que falta de sorte ele teve. Esses dias todos o vi sentado na soleira de minha casa, na porta que branca se abre para os raios de tudo, e costumeiramente se fecha só quando eu desisto. Trajava bermuda de linho e uma tatuagem no braço, é, o tempo mistura estilos como poucos, e assim, novo e velho, veste um sorriso de sempre e até parece ser meio irônico quando sorri.
Lá fora, no jardim que avisto pela vidraça quadriculada, hoje vi minha infância passeando para lá e para cá, inquieta, com as mãos na cintura e um olhar incisivo como se quisesse me cobrar mais uma brincadeira, mas não hoje, hoje não posso, não sei brincar em preto e branco disse a ela que se fez de surda e passou para o outro lado do jardim. Hoje decidi pousar na janela qual vaso de begônias, e aguardo as chuvas de abril, só a espera me cabe completamente hoje, se eu pudesse deixar de ser um vaso de begônias, certamente eu seria uma ampulheta, empoeirada e cansada de girar de cabeça para baixo e de cabeça para cima, e outra vez e outra vez, isso anda me dando náuseas.
Mas sou raiz, entranhada neste mundo negro de grãos e fiapos de tempo. E mesmo que ainda sinta minhas folhas, não chove ! nunca chove e vivo neste parapeito a esperar um milagre que jamais acontece. Ando tão cansada de ser begônia, tão imensamente fragilizada pelo sol escaldante, ah...quem me dera eu pudesse só secar em paz. Mas que insistência é esta de minhas raízes em buscar água dentro do deserto?
Por mais que eu as avise que não adianta, elas persistem !
Vai ver é a essência da raiz que faz com que ela não desista.
Qualquer noite dessas escapolem pelo vaso e vão agarrar-se as grades da janela, ai quero ver elas tirarem água de ferro, teimosas!
O garoto-tempo adormeceu lá na porta outra vez, recostou-se na madeira branca e agora sonha, não sei com o que, não me interessa, é, não me interessa mais o que o tempo pensa, o que tempo fala e nem muito menos com o que o tempo sonha.
A lua aqui fora está enorme! parece um imenso prato quebrado ao meio, ela está clareando tudo mas tudo continua em preto e branco. Tão tedioso quando o tic tac que agora toca lá na cozinha avisando que está na hora de apagar as luzes, deitar e fingir que os sonhos estão do outro lado. Na verdade mesmo, eu queria era uma paleta nova, cheinha de cores reluzentes e uma tela do tamanho do mundo inteiro.
Mas o que pode uma begônia fazer com uma tela? nada...e o que pode mais ela fazer? nada, só mesmo observar o tempo dormir e mais nada.
Márcia Poesia de Sá - 2015.

_ Aquela sua dor passou querida?
_ Sim, passou. Entre o quinto e sétimo parágrafo, ela desapareceu.


Márcia Poesia de Sá.
O apito
E assim, no cair terno de mais uma tarde, quem sabe recaia por sobre os telhados de cacos um tanto quebradiços, uma pequenina chuva fina de esperanças !
Pois daqui de onde sento acima da colina grande de areia quente, pouco vejo além do sol que a tudo toca em um branco que cega um pouco. Lá, naquela ínfima casinha de uma janela só, tão solitária, avisto apenas aquela toalha de mesa que balança e dança, ao sabor do vento que brinca de pega com os grãos de areia.
Do outro lado, passa cegamente apressado, o carro preto dos policiais levando em seus bancos todo o pedantismo das certezas pre- formuladas. Eu sorrio, sorrio mesmo, um sorriso aberto, claro e tranquilo, como um desabrochar virgem das tulipas da neve. Meus pés, agora unidos e quietos, afagam a areia e são afagados por ela, num romance tão antigo...
Ah...e ele, o mar, agora me olha dentro dos olhos e esboça um sorriso morno, quase pueril, fico aqui olhando tudo e imaginando, no que pensa o fundo do mar?
E assim, no cair da tarde cujos relógios quebraram-se todos, eu, poeta inútil, tão facilmente inútil, apenas me deixo sentir a brisa, o sal, e os suores dos coqueiros tantos, que ainda assim, brindam-me com uma certa intimidade tosca. E na distância do cais, outro cargueiro apita sua chegada mansa.
Márcia Poesia de Sá - 2015.
Limpa água
Eu só quero uma taça de água clara
de um puríssimo cristal, de cortes calmos
hoje nada me tira do asfalto
desta minha entranhada sensatez
Hoje eu quero o mais puro dos riachos
quero a mata, assim nua, pura e casta
o silêncio que deglute os berros roucos
poucos muros rodeando a minha exatidão
Eu só queria o doce mel dos favos
e os buques que preguei em sonhos escondidos
nada me late mais alto que teus grunhidos
e me invado nas pressas das tardes,
para deitar nas redes de fluidas cores só minhas
Hoje eu só quero água limpa!
E que dos olhos não me venham tempestades.
posto que eu vivo também desses alardes
que em mim vibram como harpa
Nada me sobra, nada me falta
sou a vastidão de meus instintos
E é na lâmina fina da lata
que adentra o pulso em batimentos insanos
que redecoro os vazios de todos os meus papiros e prantos
e de novo repinto o meu amanhecer.
Entre gotas que se vestem de rosa para me fazer dormir.
Márcia Poesia de Sá 2015,