segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A noite vermelha

"- Você acha que sou uma estrela?
- Claro, é óbvio para mim que és.
- E o que tu conheces das imensidões onde as estrelas morrem?
- Nada, eu só entendo de flores cansadas.
- Então, perdão, mas quem não reconhece essas coisas,
não sabe nada de estrelas."

A rua estava com preguiça, e os lampiões que incendeiam lentos em labaredas de horas, piscavam bêbados de tanto rir. As pessoas fantasiadas de alegrias tortuosas, passavam para lá e para cá, como se estivessem perdidas nesta vida torpe. O velho que sentado num canto da praça era mais sem canto que um barco á deriva, naquela noite eu pude observar um riso no canto de sua boca, enquanto ele, olhava as meninas com saias de xadrez e lenços na cabeça. Ele as olhava por dentro, e elas, sequer o viam. Eram cegas de realidades aquelas meninas, para elas o tempo era um chiclete preso ao solado do sapato, que ninguém via, que ninguém tira e apenas vai se desgastando assim, em cada arrastada no asfalto dos anos sem sentido.
Para elas, o único medo possível era amanhecer antes da hora! o resto morria para elas por ser inexistente. Quando não concebemos fatos, eles são como fantasmas, não existem de verdade, só assombram os incrédulos. Naquela noite eu me vesti de espectro, e sai pelas ruas, passeando meus olhos, eu só passava, aliás passava e observava tudo. Cada beijo se esgueirando pelas escadas frias, cada chamado beirando o desespero dos medos, cada guarda plantado nas esquinas, com suas imensas dores nos pés e a cabeça passiva, inodora e nada latente, a cabeça de alguns guardas tem a forma de rochas, e só respiram um pouquinho quando o sino toca! ah! também passei umas horas sentado no parque de horrores, eu subi em uma árvore e me cobri de estrelas, elas estavam tão frias naquela noite...
E foi de lá do tronco roliço que soou minha gargalhada mais imponente. Quando usei as flechas dos meus olhos e adentrei na virgindade da cidade quente. Ela, toda cortada por rios geladinhos como o frio da saudade, cantava baixo uma música que não consegui traduzir, mas lá do rio eu vi, quando as pontes começaram a dançar, uma delas levantou-se igual a uma serpente em rodopios tão insanos, foi bonito ver, logo depois a outra enrolou-se como um novelo de linha e foi costurar as nuvens rasgadas e tímidas. A mais velha de todas, a última da fila abriu-se como ave se abre e só voou pelo centro todo do infinito púrpura.
O velho nesta hora deu um coxilo e ainda bem que ele não viu nada, pois eu imagino que ele engasgaria os solos tão silenciosos e gordos de mesquinhez, e quiçá caísse de vez em seu próprio abismo de razões imbecis. Ele dormia, nas mãos o brilho guardado de uma garrafa vazia, dois reais amassados como pombos da miséria, e nos dedos só um cigarro apagado e molhado de chuva. Nesta noite, eu vi o mar confidenciando-se com o marco zero, e eles me pareceram bem amigos.
Havia também o palhaço! ele pulava as pedras do piso das ruas de cinco em cinco, e de vez em quando parava numa porta, falava qualquer sandice e voltava a ser inútil e feliz, enquanto os risos ecoavam pela madrugada inócua. A roupa que ele usava era de cetim colorido e ao passar pelos candeeiros vermelhos, ele de repente se tornava dourado como um sonho bom, mas isso só durava o tempo de dois saltos de cinco e ele voltava a ser escuro e balançava aquele corpo magro escondido dentro da fofura ilusória, apontava o vermelho nariz para a próxima esquina e seguia sua sina. O homem que vendia sacos de amendoim com poesia também passou por mim, gordo, alto e empurrando aquele corpo e o carrinho de quatro rodas e tanta fome, declamava estrofes sujas de um poema antigo, e findava a frase com o grito rouco: Amendoim é para poucos!
Tive uma vontade enorme de mastigar o sal do tempo quando ele passou por mim, mas me contive, eu não poderia parar a peça no meio do décimo ato. Temi assustá-lo com meus olhos de fogo frio. Logo ele, que passava horas torrando a paciência e as sementes da terra.
Os taxistas parados em filas cochilaram seus cansaços á espera da pressa, e naquela noite, me pareceu que nenhuma pressa havia por entre aquelas ruas mágicas e lerdas, como o sono das estátuas. Foi aí entre as quatro e meia e cinco horas, que eu a vi caminhando pela beira do rio, agora já sem qualquer ponte, ela vestia um vestido branco, um pouco abaixo dos joelhos, tinha os cabelos lisos de um tom igual a mel que queima, nas mãos só carregava uma flor, tão cansada aquela flor! deve ter caminhando muito coitada. Ela veio caminhando e eu fui ficando mais e mais magro como se eu fosse desaparecer, meus olhos foram ficando opacos, já não via mais as estrelas como antes, e me plantei na grama que arroxeava ao rio. Ela parou bem perto de mim, sentou na grama e se recostou em meu corpo, agora frio e muito esguio, com um lampião na minha cabeça! de repente eu era um poste.
A menina olhava o rio e eu podia sentir a correnteza de seu sangue a pulsar por dentro daquele frágil corpo de princesa perdida. Ela olhava os casarios e sonhava com tempos que certamente não existem mais, ela era linda e eu não conseguia falar sequer uma palavra que fosse com ela, nada! era como se os olhos dela estivessem sempre olhando para além de mim, e eu inexistisse também.
O sol brigava com as nuvens para aparecer e eu rezava para que ele se atrasasse, quando ela começou a falar sobre reflexos, sobre luzes e sombras e então me perguntou:
- Porque iluminas o breu? não vês que muitas pessoas não desejam amanhecer nunca? que são como relógios parados pelo tempo, teu trabalho é inútil, disse ela.
Minha garganta ardeu nesta hora, eu tinha tanta coisa para contá-la, do que eu havia visto na madrugada da vida, das curvas e das retas daquela cidade mar, mas eu não podia falar...
A menina jogou a flor cansada que carregava, no rio, depois esgueirou-se de costas por meu corpo levantando-se, bateu o vestido que cheirava a jasmim e foi se afastando de mim lentamente, foi na direção da rua principal como se nunca mais eu fosse eu vê-la.
Senti saudade. Apaguei minha luz e chorei. Naquela noite eu dormi no escuro no centro da cidade, e ela ficou de repente tão fria, mas tão fria, que eu nem entendo como não nevou em Recife. Ela não entendeu que eu não era uma mera luminária previsível, mas que muito mais que isto, eu era a poesia que chovia das estrelas, eu era a dor dos poetas, eu era o som das violas, eu era mais, eu era mais. Mas com a aproximação dela de mim, eu fui transformado em um mero poste de lata. Ela jamais vai poder ouvir o que eu ouço quando uma estrela morre, ou quando ela chora, e eu, nunca mais vou sentir o perfume de seus cabelos me roçando o tronco gélido de amor e desespero. Não sei onde eu estarei amanhã! se aqui na praça, se em cima das árvores ou ronronando pelos telhados velhos, mas eu sei que nunca mais, nunca mais...
Eu serei o mesmo, depois desta madrugada arranhada de cores tão febris.
Ah...e só para comentar mesmo,
os bondes fantasmas já saíram do cais e estão neste instante na praça da república, carregando os mortos escritores e as damas com chapéu de flores, que dormiam nas esquinas até amanhecer.

Márcia Poesia de Sá. 2015
Prosa escrita para a NOP Inspiraturas.
"Cantos do Brasil" - oficina de lirismo
Almas trocadas

E a esta sedução quase indizível, subterrânea entre troca de olhares, tão aparentemente, inocentes. A sedução das mãos que se buscam cegamente, loucamente ! num arfar de movimentos ritmados, como um bailar de gaivotas transparentes...
O febril incenso que da pele exala em um silêncio esmagador
adentrando os poros mais sutis dos pensamentos, rodopiando qual vertigem!
E a esta sedução de vozes que adentram os tímpanos como ponta de língua
a buscar o suspiro, cravejando as garras nas coxas, como se fora apenas carne.
Este emaranhado de pele que se confunde tanto, ao ponto de perderem-se em espasmos indefinidos... e o calor que abriga o abraço, as línguas em fúria ou terno cansaço, e não há mais o espaço! e não há mais lençóis, não há cama nem quarto, estão nos confins do universo, versando o tátil encontro, na malemolência de uma nuvem e outra, na cadência de um mar de coisas, como ondas, até o fim.
Até o desabrochar do sol, quando as janelas finalmente acordam, e só ai se percebem adormecidos, pedaços ainda dos sonhos, filhos do latejante tilintar de horas que acorda o dia, e na maciez de um riso parcamente ensolarado, se desejam bom dia.
E a sensação do todo a percorrer os veios mais profundos da pele, que lentamente desperta, levanta e caminha calmamente até acender o sentido do olfato, quando uma água quente escorre iluminada e fumegante e dissolve o pó de café, que mergulha quente na garganta, qual negra cachoeira e sai em busca das almas, que por hora, ainda dormem...
Aconchegadas e letárgicas, trocadas!
Uma no peito do outro. Enroscadas ainda,
dentre os negros pelos ou nas suaves rendas do cetim prateado.

Márcia Poesia de Sá. 2015
Sol na penumbra

E os anos vão acumulando poeiras e desertos até que um dia...
num suspiro de surpresa a tormenta se dissipa ...
todas as nuvens desaparecem
como um sopro doce
de um querubim
é o sol, na idade da penumbra
é o milagre vivo e pulsante
extasiante sensação!
que lateja na inocência de um eterno imaginário
que volta e revolta todos os medos guardados
que levanta as folhas guardadas em armários.
é a poesia virando vida num recanto encantado
onde tudo vira brilho, é um estalo!
um poeta apaixonado !
uma loucura assinada
um resvalar do vento
uma vela á deriva...
ah...
é a penumbra virando verão!
é o mar da consolação
o perdão de Deus
o brotar da paixão
e após a longa noite de trevas
é a benção maior
o sol
abraçando tudo
clareando a saudade
englobando o sonho
durante o tempo que perdura infinito...
por entre ampulhetas espatifadas!
até a outra manhã...
e a outra,
e mais
outra,
e outra...(...)
In
fi
ni
ta
mente...

Márcia Poesia de Sá