Lembranças ( ou Arquivos)
Decidi lembrar, e o ato de lembrar pode ser algo bastante interessante, pois passeamos por nossas gavetas, é isto, e bem assim que vejo. Nós vamos vivendo dias, experiências, amores, meses, anos, desamores, estações, lugares tantos lá fora e em nós mesmos e vamos como colecionadores fanáticos, guardando em nossas gavetas pessoais as coisas que achamos pela vida. Um dia percebemos que ha de se fazer uma limpeza na mente e ai percebemos o quanto havíamos guardado de tantas coisas, e começamos a usar um olhar mais critico sobre as coisas que vamos amontoando quase sempre sem critério. Sinto que o passar dos anos vão modificando tanto a nossa alma que em muitas ocasiões me pergunto: para que lembro disto? por que cargas d'gua guardei esta lembrança tanto tempo?
E nossos sensores vão assim ficando mais lubrificados e atentos, começamos a conhecer de longe memórias especiais e o volume imenso de lixo que nem merecem ser vistos outra vez.
Por incrível que isto possa parecer isto não significa que ficamos mais frios, no meu caso até adocei o crivo da memória e aperfeiçoei os controles que me permitem esquecer rápido o que me dói, ou machuca. Lembranças dolorosas podem doer por uma vida inteira portanto, não merecem ser guardadas. Na ultima faxina que fiz em meu reservatório de memórias, joguei tanta coisa fora que acabei ganhando um arquivo novinho em folha, de muitas gavetas e completamente vazio. No arquivo junto a este, ainda decodifiquei e arrumei em ficheiros as coisas boas da época da escola, aquelas árvores cortadas em forma de animais do Colégio das Damas, ficaram na mesma pasta do sabor da Frateli e dos cheirinhos das coxinhas feitas pelas freiras de lencinho cinza, simpáticas senhoras de riso fácil, lá também algumas folhas á frente guardei Fernanda, a professora de História, as rampas de onde praticamente voávamos, os jogos internos, ah guardei também aquela janelinha onde sempre provávamos as hóstias antes das bênçãos do padre Pinto. E nem preciso dizer que isto ocorria á revelia da linda freirinha que conversava conosco pela janela mas que sempre se virava de costas para pegar mais farinha. Lembro-me tão bem de tudo daquela época, da sala da diretoria, da sala dos professores, dos aromas e sabores, das amizades que duraram anos a fio e até das que se perderam pelas exigências da vida. O caminho de paralelepípedo que caminhava o colégio todo, e que até hoje é igualzinho, meus pés cresceram sobre aqueles retângulos cinzas, e é engraçado imaginar esta imagem. Interessante também é que as memórias do terrível professor de matemática ( Rômulo ou Rêmulo, sempre confundo pois eram irmãos) está ficando cada dia mais fluida e já quase desaparece do papel, e opostamente as doces lembranças parecem sofrer uma transformação de negrito. Agora penso neste efeito levado as outras memórias, memórias por exemplo de amores passados, será que este efeito também ocorre com eles, bem, dizem que o que pertence ao passado se não se mantém até o futuro é por não ter merecimento, mas será que é assim? será que exatamente por este efeito de atenuar-se as dores e enfatizar o doce, alguns amores do passado parecem ter sido mais belos que foram na verdade? não sei dizer, sinceramente não.
Pouso como se por milagre nas areias de Boa viagem, menina ainda que caminhava e sentia as areias lhe adentrarem os dedos e a alma, sinto o calor do sol que me queimava a pele, deixando meus cabelos ainda mais dourados, vejo o mar que prateava, e naquele instante foi só isso, isto e a espera de ver a toalhinha na janela do sexto andar avisando-me da hora de voltar para casa, pois provavelmente o almoço já estava para ser servido, lembro-me da amiga que morava no mesmo quarteirão e que trazia o violão para em baixo dos coqueiros tocarmos as horas e cantarmos nossos sonhos entre batidinhas nas pernas cruzadas dos surfistas amigos e os olhares atentos do posto de salva-vidas. Ah lembro também dos sabores da sorveteria Beija Frio, e do famoso carro do amigo, cujo apelido era Macarrão, sei que podem imaginar o motivo, era altíssimo e muito magro, mas o carro dele merece umas frases neste texto, pois sempre nos levava para dançar, assim como para os filmes do cinema Veneza ou São Luiz e depois acabava por nos abandonar na Sé de Olinda depois do lanche por não querer pegar! acho que aquele carro era apaixonado pela vista de Olinda! Sempre que chegávamos lá, ele decidia ficar, ainda bem que Olinda tem muitas ladeiras e depois de algumas tentativas e empurrões ele pegava no tranco descendo ladeira abaixo.
Numa outra pasta de memórias guardei o Brunel, ele e suas paredes de pedra, lindíssimo prédio que mais parecia um castelo, nesta pasta guardei especialmente a amiga Nathalie, Francesa de Toulouse, que nem recordo exatamente como conheci mas lembro que sempre estávamos juntas, mesmo quando nosso inglês ainda engatinhava e como nem eu falava Francês e nem ela Português, imagino hoje que realmente nossas afinidades apareceram antes da linguagem. Lá também guardo alguns professores inesquecíveis! a loirice feliz e terna de Sue Barnes, as graças do barbudo professor de fonética, e as diferentes e hilárias explicação da professora indiana de textos e contos. Guardo a biblioteca com seus silêncios e sussurros, o sabor do chá com leite, o clima dos pubs, e o rosto dos amigos que sempre se encontravam por lá. Lembro-me como ontem da casa de misses O'Brien, com tudo que ela representou para mim, guardo os dias de frio e de muito frio, o branco da neve, e o enganador céu azul que prometia calor mas mentia. Enfim hoje decidi lembrar e assim vou lembrando devagarzinho e abrindo pastas deste meu arquivo de tantas coisas, coisas que jamais serão apenas coisas, mas serão os pedacinhos de mim, e os que eu escolhi para guardar neste para sempre que nem sempre fica.
( Texto ainda em processo de criação, continuará)
Márcia Poesia de Sá - 2014.
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