Penas
E de esperar a morte morreu o indivíduo. Lacrado no túmulo da descrença, aquela á esquerda do jardim de inverno, na terceira estante de baixo para cima. Morreu vestindo sua melhor roupa, comprada dois dias antes, e usava ainda aquele perfume inconfundível do qual suas ex esposas sempre o presenteavam.
Na noite de sua morte, ligou para o melhor restaurante da cidade, reservou a mesa com vista para o mar e após uma garrafa do melhor vinho e as tantas delicias que escolhera, pagou com cartão de crédito e ainda deu uma gorjeta irrisória ao garçom. Algumas coisas jamais mudam! Dirigiu seu carro pela orla como se quisesse ao menos se despedir do mar, já que além dele provavelmente ninguém haveria para se despedir.
Estacionou na garagem, travou atenciosamente a porta, subiu as escadarias até seu quarto, mas antes, numa breve passada pela cozinha escreveu na geladeira branca e nova: Fique para você! provavelmente os gelos que dela proliferam e derretem, possam aquecer sua alma!
Sorveu avidamente um copo de água, encheu outro e seguiu a seu quarto. Ligou o som, folheou seu livro predileto, seu amigo de tantas madrugadas entre o abajur e a cama... Na sua face havia tanta densidade que ele não conseguiria expressar uma só palavra. Ha momentos em que só um profundo silêncio pode traduzir um sentimento.
Era apenas aquilo, um resto de qualquer coisa, um amontoado de desilusão, uma cratera humana. Um profundo silêncio rondava suas memórias, e antes que ele desistisse agarrou-se ao frasco de comprimidos, derramando-os todos em sua palma, e engoliu junto com o copo que havia trazido. Ansioso pelas sensações vindouras gargalhou! alto e realmente irônico, beirando a felicidade! Sabia que ninguém seria capaz de descobrir o que havia acontecido naquela noite e isto o deixava orgulhoso de sua perspicácia.
Acendeu o abajur, apagou a luz, deitou, cobriu-se e afundou a cabeça em seu travesseiro de penas de ganso, enquanto em seus lábios um sorriso desenhava-se lentamente.
Márcia Poesia de Sá. 2014
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