Ouvindo o vento
Daqui deste pequeno recanto donde olho as estrelas neste instante, parece-me que ouço tão mais que estes bucólicos sons que escorrem pelas folhas da mata. Um ou outro estalido de quem como eu, anda a caminhar na noite, quiçá em busca d'algum sentido para qualquer sonho. Paro para olhar aquele cintilante brilho que mais parece que uma estrela explodiu na negra e úmida floresta, que como uma sábia senhora me retorna o mesmo olhar que a dou.
Sentada aqui nesta mesa que agora é fria, só observo, eu só olho o mundo como uma obra branca do mais puro mármore, e em minha mente a placidez do branco se esgarça e se encolhe numa dança que invade cada entranha, e ao esfriar tudo por dentro, assim, lentamente, foge-me dos olhos algo que de cristal pinga.
Eu não entendo muito dessas coisas fugidias, e jamais entenderei algumas feras que bradam pela noite como máquinas furiosas a cortarem quilômetros de asfalto e pó. Em mim sempre viveram raízes e brotos, folhas e frutos que aprendi a esperar a maturação, eu não absorvo a pressa mas também não compreendo desistências vãs e não me atento aos arranhões que a vida insiste em me dar. Como garota que cai na areia, apenas levanto, tiro o excesso e sigo.
Daqui deste lugar onde á noite o laranja das paredes vira vermelho, sinto-me presa num rubi falsificado, que amanhã cedo, nas primeiras horas do sol irá dourar-se completamente, e o sol inclemente sequer pensará nos veios vermelhos que por dentro de mim ainda estarão inflamados pelo silêncio da madrugada. O sol nada entende de memórias abstratas, o sol só compreende o fruto e nada mais.
Ouço uns suspiros cansados de algumas almas exauridas, e o falar baixo de alguns cavalheiros de armadura, uma dama risca segredos em uma página de papel, depois amassa-os e joga pela janela da vida. Quem será esta imagem que me invade a mente, vejo-a tão clara e no entanto não a reconheço as feições apenas sinto que sua alma chora.
E é neste inefável silêncio onde abandono-me, neste dedilhar duma busca inútil, que vago por corredores internos, brancos e gélidos como o vento que agora sopra da mata para dentro de mim. Rodopia nas rochas e esbarra de leve em meu coração, que pulsa como se não mais pulsasse. De tão calado não bate mais, ele só contrai-se e expande-se num balé triste que me leva a pensar nesta insistência tão sem propósito.
Uma estrela acaba de despencar do manto azul marinho, e percebo que já não me restam desejos a serem pedidos. E sentindo minha alma aprisionada nesta densa rocha, tão branca como o silêncio, não identifico bem o que sinto, e me calo enquanto meus olhos apenas acompanham a frágil dança da fumaça que como eu, desaparece no ar sem deixar rastros.
A esta hora, nem a alegria dos pássaros coloridos me salvam de meus abismos, não ha qualquer ser que se alegre por aqui, está escuro demais na mata hoje! e um sentimento de vazio absoluto me toma em seus braços e beija minha boca com sua língua ardente e feroz como uma lâmina de bisturi.
Esta sensação tão familiar de vácuo, eu não sentia ha meses, conheço cada reentrância deste sentir e é como se miseravelmente eu tivesse voltado para casa. Mas hoje não é a mesma casa, é outra, ainda mais cinza que a antiga e ha mais teias de aranhas nas portas que insistentemente batem e ecoam pelas escadarias de mim, numa sinfonia tétrica de um mais que absoluto nada. O espelho trincado continua trincado e sujo pelo tempo, não vou passar por lá hoje, vou dormir aqui mesmo onde estou, temo não enxergar nele meus olhos vitrificados e temo ainda mais, nem isto ver.
A mata agora ressona, imagino com o que ela sonha. Como também imagino no que sonha o pelo negro que abraça um único facho de luz que consigo ver, e derrama-se da lua em sua pele faiscando pequenos cristais em meus olhos, mas eu os fecho pois hoje não ha mais lugar para nada que brilhe.
Talvez seja esta mesmo, a sina das florestas, viver toda a alegria e festa das manhãs, lamber a fome de seus filhos e alimentá-los regiamente, acalentar os ninhos que proliferam-se em seus braços, ver na retina da vida tanta vida...
E á tarde amornar-se como um embalar de filho no colo, beijando cada ninho repleto de pequenas famílias que crescem todo dia e abrir os braços aos raios mornos do sol que já cansado despede-se e caminha ao seu leito do outro lado do mundo, e sentir suas raízes aos poucos esfriando, sugando a seiva da terra que também começa a gelar á espera da lua, leva-la a suas folhas, soprar o ar para os seres da noite. Sempre tão famintos de tudo.
Enfim, quem sabe seja mesmo esta a minha sina, trazer a vida, a poesia e a cor para depois morrer. Como morre o sol todo dia, quem sabe eu tenha estado tempo demais perto desta mata e tenha com isto aprendido a anoitecer de uma forma tão densa, que nem eu entenda.
Então, se é mesmo este o caso, preciso urgentemente fugir para um cais! um dique, um ancoradouro qualquer donde eu não mais veja esta escuridão que esfria-me tanto por dentro. Sinto que preciso de velas e águas que me salguem por fora o que já é tão salgado por dentro.
Espero então neste momento que caminha para mim, e eu posso senti-lo, ver manhãs prateando-se de azul, e comer velas brancas com olhos de riso, como se elas fossem parte deste meu viajar infindo, pretendo mesmo escrever outro final para esta história, não sei se conseguirei ser entendida pelos que depois de mim, lerem minhas marolas na areia branca. Quem sabe o mar me seja brando.
Até porque acredito que onde quer que eu vá, levarei comigo as tantas raízes de minhas árvores que mesmo na distância de mim, ainda me falarão da seiva fria que sobe-lhes o tronco.
E da imensa saudade que sentirão de mim. Nesta triste herança de ser mais que apenas eu, mas sendo todas , numa só perdição, numa sina de letras que espocam na boca, e neste gosto de tantas vidas que me abraçam, apertam e estrangulam em madrugadas como esta, nas quais eu ouso ouvir o vento.
Márcia Poesia de Sá - 2014
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