quarta-feira, 26 de março de 2014

Entregue a Poesia

A manhã ainda reverbera silêncios, quando meus olhos se entediam dos sonhos. Vai ver é ela! este ser a quem sou submissa e escrava, que me tira dos lençóis sem qualquer piedade, e fingindo um amor irônicamente eterno me carrega pelos vãos da casa até o ponto de partida.
Fica esperando o tênue instante do voo, senta ao meu lado e só observa este transe. Eu já não reluto, sinto-me entregue e incapaz de nega-la seus desejos e vou com ela até as altas horas e despenco de nuvens e subo até os anéis de saturno. Rodopio os buracos negros de sua inexatidão e afago os rostos nublados das pontes sonolentas.
Algo caiu lá fora, uma folha suicida provavelmente, mas as notas que me tomam a mente e que em cordas se fazem e refazem não me permitem ir ver o que foi, neste instante sou só água de rio, frio e obstinado sigo meu caminho de atalhos, ouvindo ao longe este sax que parece desenhar brilhos na lâmina d'agua de mim. Enquanto as guitarras arranham minhas saudades com toques suaves e a lua sorri.
Ah...esta doce tirana! sábia que é de meu amor, não retrocede um só milímetro de seu intento de me esvaziar, rasga minha pele com garras afiadas, me vê sangrar, e posso ver em seus olhos um prazer absurdo! fica ali estática aproveitando cada segundo de meu liquefeito fenecer em linhas. Depois, costura-me ou me deixa assim escancarada caso o sol venha antes do meu sono, enfim ela sempre faz o que quer de mim.
Há dias em que desconfio que em minhas veias correm outra coisa e não sangue. E que em minha pele interna tem de haver papiros antigos, quem sabe escondido entre as costelas e a coluna vertebral haja um armário, um cofre...não sei.
É, são nessas horas silenciosas que vão saboreando a madrugada favo á favo, e os favos derretem na língua como algodão doce, que a olho no fundo das retinas e percebo mais de perto seus mistérios e difusas intenções . Sua alma é muito intensa e há instantes em que sua luz incendeia tudo por aqui. Mas ai ela repousa, suspirando como se mais um parto na madrugada fosse finalmente terminando, e calma como um anjo, me olha nos olhos e em instantes me surpreende e volta á soprar e eu tenho de ir, como eu já falei não sei escapar de suas vontades, começa tudo novamente.
Assim é, sou literalmente possuída por ela, meus dedos quase não me obedecem, meus olhos se transformam em expectadores e só veem horizontes, o papel vai sendo germinado, e proliferam gametas desta alucinada cópula no útero manso de mais uma página.
Há momentos em que suspiro, e ela sempre me olha apressada! mas é que este esvaziamento me da uma sensação de vento saindo de dentro e eu tento só apressar seu caminho ao universo dos vapores que sobem aos céus.
_ Não é nada querida á tranquilizo, imploro um momento de silêncio apenas, peço para ir lá fora ver as estrelas, mas ela só responde assim:
_Depois.
Eu, me aquieto e entro em mais um rodopio do som da guitarra, sinto mais forte o vento que agora aninha-se em meus cabelos, e entra em cada cacho e vai descendo pela nuca, costas e seios, e num giro rápido toma todo meu corpo e me fazendo subir em êxtase ao centro da sala, meus pés estão no ar e apenas flutuo. O vento da poesia sabe muito bem onde começamos e onde terminamos, ele reconhece cada fragmento de alma ou medo, amor ou renuncia, ele mais que qualquer um conhece o sabor de seus poetas e quando ele decide levar-nos com ele, o melhor a fazer é apenas se entregar.
O tempo então, torna-se apenas um ínfimo detalhe. E o mundo pára! Quando finalmente ela me permite pisar o chão, já não estou na sala, mas agora no gramado e está frio. Ouço sons que me lembram onças do mato e um calafrio me passa pela pele que agora arrepiada estremece. Busco a lua, mas escondida entre duas nuvens ela ainda não pode me socorrer e nem ouve meu clamor telepático, no momento há postas demais falando com a lua, posso ouvir seus sussurros.
No azul que dorme na água, leio frases que falam de morte e despedidas, um lobo uivou dentro da mata, o verde da grama agora começa a enraizar meus pés, sinto os fios subirem por entre meus dedos, perna e coxa, eu não posso me soltar e a poesia de pé e há uns dois metros de mim apenas instiga a força do verso.
Minha pele petrificada num misto de prazer e pavor, começa a ser sobreposta e camadas sobre camadas agora, transmuto-me em árvore, sinto algo percorrer-me por dentro, uma seiva quente! que escorre docemente em palavras que ainda não consigo decifrar. Sei que é ela, eu sei que é ela e juro! neste momento seus olhos brilham e ela guarda na face um riso manso.
As camadas me chegam a face e cobrem meus olhos, mais nada vejo, só sinto a brisa da madrugada e o transformar de meus cabelos em folhas e em cada erupção de fruto, desfaço-me um pouco mais. Está frio demais aqui e adormeço. Muito ao longe, uma guitarra ainda chora.
Não sei quantas horas se passaram, não lembro do que aconteceu depois, mas quando acordei, eu dormia nos braços dos lençóis ainda, a manhã já não reverberava silêncios mas agora exibia-se em muitos cantos de pássaros, e eu até acreditei ter sido só um sonho, até que senti entre meus dedos dos pés um fininho e dourado pedaço de raiz, e tirei de meus cabelos uma peninha de canário da terra. Bom dia poesia! penso em silêncio, mas também no meu silêncio sinto ecoar um suspiro de satisfação e percebo tão bem o amadeirado, irresistível e perigoso perfume dela.

Márcia Poesia de Sá _ 2014
Raiz da estrela

Pronuncio teu nome baixinho
entre a boca do noite e o cílio da madrugada
ouço os suspiros que vão em revoada
Cortando um céu que mais parece espinho

Tateio levemente meu emaranhado coração
entra a boca da noite e o cílio da manhã
acometida estou de uma febre tersã
que dança por entre as horas que vem e vão

E meus olhos te veem tanto
que largo no vento uma lágrima
que em nada é como lástima
mas só um alazão de saudade que corre por todo canto...

E de repente, meu corpo ilumina!
sabendo que amar-te-á para todo um sempre
gestando e acalentando este amor em meu ventre
Como se eu fora uma estrela tua, enraizada numa colina.

Márcia Poesia de Sá
Não brigues comigo

Não! não brigues comigo por esta mania que tenho de guardar doçuras em caixas fechadas, guardo por saber bom, por cuidar de estrelas desde sempre, e por saber que carinho é planta que não fenece. Não! não fiques triste comigo por ser esta inexatidão de rotinas, essas tantas linhas trôpegas que de quando em quando falam verdades. Mas que também como crianças atrevidas carecem balançar suavemente sobre os abismos por ora crescentes.
Sabes? guardo de tudo um pouquinho, anoto frases sem sentido e amo quando elas batem asas de mim e buscam seus recantos perfeitos em textos que ainda não fiz. Não faças esta carinha de bravo, pois tenho muitas caixas de risos guardados e se eu as abri agora, sei que não resistirás a espalhar as estrelas que dormem entre teus lábios, fazendo com que todo o céu se torne apenas um palco para este teu riso encantador.
E assim, enquanto a noite brinca de eternidade com os relógios, vou arrumando nossas caixas, e de pouco em pouco vou liberando espaços, dobrando abraços, enfileirando os beijos e sentindo tão perto o teu peito, que de uma caixa ouço-o bater. Bate adormecido, tranquilo como poema finalizado, acaricio a morna pele deste amor encantado, e deixo-o sonhando que é passado.
Não! te peço, não brigues comigo. Minha poesia se aninha entre travesseiros, e se brigares comigo, ela chora! mas se ficares assim quietinho ao meu lado, verás que as cores tecem bordados e que há mais brilho em meus olhos do que no céu estrelado, já que tenho esta mania de guardar retalhos, de colar cacos, de esquecer de horas e de te amar demais!

Márcia Poesia de Sá.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Gotejar

Aqui pensando no que vem após cada linha, bem, melhor dizer que isto não é bem um pensamento, se eu pudesse descrever em palavra usando imagens, o que faço agora é assim: saio de pés descalços pela areia de meu sentir e abro as portas, só isso: apenas abro...Neste instante uma brisa vem lá de algum lugar que não sei identificar e vem trazendo coisas que creio eu, queiram sair. Fico assim como expectadora de tudo, e confesso que uma certa curiosidade me toma também, junto a esta sensação de curiosidade vem uma sensação de esvaziamento, um misto de alivio e expiração de alma. Acho que é isso. Me vem a mente outras sensações, como aquele instante em que você sente um abraço de alguém que ama muito, sabem do que falo, aquele instante em que nos sentimos mais que corpo, mais que esta ínfima vida de menos de cem anos, e mais, a eternidade de uma estada em nós, que se multiplica nas outras criaturas com quem convivemos aqui, neste curto espaço de tempo. Uma plenitude sem sombra de duvida vem conversar comigo e ela fala mansinho, terna e pausadamente, parece que precisa me fazer entender alguma coisa, eu, de pé ao lado da porta, apenas sinto o que passa, olhos fechados, alma escancarada e um silêncio que mais parece ninar ternamente as palavras que agora, como um riacho doce, escorrem de mim.
Hoje queria adivinhar uma caverna, é, eu queria sim! adoraria ler e reler o que escrevem as estalagmites. Sentir profundamente o instante da primeira gota petrificada, da segunda, e de todas elas assim enfileiradas até a última gotinha que antes de ontem se agarrou a rocha e ali permaneceu e permanecerá para sempre. Quem sabe, fazer um exame atento ao que ficou e sempre fica, guardado dentro e esperar que de algum lugar na caverna eu possa ser só um filete de raio de sol, uma luz plácida e tranquila que de alguma forma tenha a permissão de entrar e apenas toca-la de mansinho e ficar ali, quietinha, observando e aquecendo com carinho. Cavernas são seres muito intrigantes, são silenciosos, absurdamente profundos e difíceis de decifrar, em alguns momentos se mostram abertos mas deixam sempre aquela sensação um tanto parecida com um frisson, de que a qualquer momento elas vão simplesmente fecharem-se como concha de mar que guarda pérolas negras.
Então, eu, ínfimo filete de luz, preciso ir com calma, preciso adoçar tanto o meu olhar a ponto de jamais ferir-lhe a tez de pedra, caso contrário perco por completo minha passagem para o paraíso de veios e gotículas, de reflexos e escuridões, de abraços calmos e de revoadas dos sonhos que sempre passam por lá, é sim queridos, as cavernas sonham sabiam?
Numa certa manhã, ainda muito cedo, quando estiquei-me do sol até a pequena fenda na rocha, que coberta por musgos e folhas finas de capim, quase não é vista, adentrei muito suavemente seu interior como um primeiro beijo, e então, eu a surpreendi sonhando.
Sua respiração estava mais calma, e ela guardava na face uma docilidade encantadora que contrastava e em muito com sua habitual face de rocha, austera e repleta de segredos abissais. Nesta manhã cujo dia parecia estar se espreguiçando ainda, a caverna sonhava com areias brancas, daquelas que jamais havia visto de verdade a não ser em seus sonhos, ela sonhava com a doçura de voos que jamais fizera, logo ela, incrustada em suas eternas esperas, e lentas gotas de formatação rochosa, como poderia sonhar com voo, sol e vento? pensava ela no próprio sonho, mas ainda assim por pequenos instantes que fossem ela se permitia se abandonar no colo do sonho e esquecia tudo. Ficava morna e aproveitava seu sonho com um sorriso na face, ela estava em paz naquele instante eu vi. Ah pobre caverna, eu a amava tanto, eu via em suas paredes aparentemente frias e úmidas, o calor de toda uma sedimentação de coisas, eu podia ver por entre seus olhos aparentemente gélidos todo o sonho contido nela e seus silêncios as vezes me pareciam suspiros cansados mas cheios de vida. Em minha forma de fio de luz eu a atravesso quando ela não se espessa para mim, então me é fácil ver suas entranhas e ha tanto colorido guardado em seus marrons, negros e cinzas, que nesta manhã eu juro que queria ser mais que a luz, queria possuir algum dom mais especial que só ilumina-la por dentro! ah...eu queria tanto poder abraça-la por completo, aninha-la em meus braços e carrega-la para longe, quem sabe eu pudesse leva-la deste mar de verdes escurecidos para um mar azul e transparente, ela poderia continuar com sua essência de caverna pois assim ela é e sempre será e deverá ser, mas eu queria deixa-la numa ilha, ou numa praia bonita e parcialmente deserta, donde ela pudesse sentir a maresia, ouvir os sons dos pássaros marinhos e assim de relance, de repente sei que a veria sorrir ao olhar o mar. Quem sabe suas esperas nestes dias fossem mais curtas e mais alegres, mas eu, ínfima luz apenas, só sonho...sonho e planto sonhos já que meu calor faz florescer vida onde aparente não poderia haver, sonho como sonha a caverna, como sonham os poetas do passado, como sonham as libélulas e as rosas que de tempos em tempos exalam e fenecem mesmo sem fenecer. Contudo, e ainda assim, sonham, e isto é bom.

_ Ouves o som das ondas caverna?

Ouso falar-lhe em pensamento meu, minha voz macia a penetra a pele áspera em uns pontos e tão nova em outros, e aqueço sua alma como carinho. Quero que sinta o quanto sou sua amiga e a amo. Ela, ainda sonhando, apenas balança a cabeça e esboça um riso manso que finaliza num suspiro longo de quem entende do que estou falando. Quão sábias são as cavernas! definitivamente são.

Márcia Poesia de Sá - 2014.

http://www.youtube.com/watch?v=DneBqA-vx6c

sábado, 22 de março de 2014

E assim sendo, que o seja.

Desertificando ando, na clareza duma imensidão tanta, e percorro escadarias e prantos, tateando com olhos cegos, paredes de pedra. Arranhando a fina pele em pontiagudas lâminas de arenito e farsa.

Desertificando ando, quando não me encontro em meu sorriso, que brilha opaco por sobre os freios dos dias, e miseráveis cacos de vidros! mas solitário persiste, numa briga injusta com os rochedos.

Desertificando ando, quando arregaço meu coração usando os dedos de minhas mãos e ao olha-lo de perto, uso lente de concreto e nada vejo. Nada vejo...

Desertificando ando e as areias já me tomam os olhos, sou duna na imensidão! um silêncio irrisório, uns anos inúteis, uns riscos impuros, e uns anjos enlouquecidos. E do deserto ao qual pertenço agora, sou só um destroço e tu, puro abismo.

Márcia Poesia de Sá.
Náufrago

Se por teus olhos navegam esfinges dúbias
em cujos corpos proclamam rubras manhãs
tão vãs as auras que escorrem das horas púrpuras
São filigranas rasteiras, nas minhas doces maçãs

Se em tuas mãos escorre a infinidade de aromas
amoras morenas, ruivas maduras, ou madalenas...
e na vastidão da solicitude, te perdes em águas
são apenas os teus tantos nós, a acumularem chuva

Posto que n'alma que afaga o inefável como beijo
doando-se as madrugadas, por infindáveis leitos
transmuta sua essência, metamorfoseando-se tanto
que perde-se e adentras como elfo no labirinto negro.

Enquanto o tempo deglute a vida aos pouquinhos
revoam águias, desamores, amores e promessas fluidas
riscando qual raios e trovões nosso mar impreciso
numa página banida de um papiro amadeirado

Portanto, se por teus olhos revoam ainda alguns relâmpagos
Façamos das noites, um conto com inicio, meio e fim
e na clareza dissimulada e febril da branca lua nua
rasga meu negro manto, e meu medo tanto, unindo minha boca a tua,
adentrando-me, como um Deus completamente náufrago.

Márcia Poesia de Sá - 2014
Rede de arrasto

Quando a vida nos impõe grandes verdades e nos arrasta a face pelas pedras necessárias, arranhando profundamente nossos pseudo encantos, corre por todo canto um sangue sem sangrar. No entanto insistimos em ver fantasmas brandos, mas a vida não é branda, não é e nunca foi. 
Nós é que como crianças afoitas ousamos sempre acreditar em fantasias e essas fantasias n'alguns dias são sim, fantasmas horrendos, a percorrerem calabouços de nossas almas enquanto só o vento frio que se esgueira pela fresta, assovia uma música arrepiante.


E nesses dias há de se perder a poesia, pois a poesia não cabe inteira em tão profundo pranto. Quando a vida nos rouba a lente colorida, é de cinza que se pinta o dia, e são nos tons do negro ao alvo que deflagram as maiores dores humanas, as verdades sãs e coerentes, as frases mais latentes e um choro sem lágrima. É a verdade escancarada, a pele rasgada, o peito vazio e a solidão. As notas de sons viraram as esquinas, neva mais uma vez em minha alma e desta vez, não há cobertores. E nesta pesca sem pesca e nem pescador, eu e minhas entranhas continuamos a dançar com a lua. E o mar, mais que nunca, hoje está prateado. Quando a vida se nomeia maturidade, apesar da coleção de adeus, só uma coisa nos mantem vivos, o dom de saber sofrer em paz, e essa estranha mania e continuar apesar de tudo. Apesar de tudo... apesar.

Márcia Poesia de Sá.